terça-feira, 19 de julho de 2011

Bola de Sebo - Guy de Maupassant


Durante vários dias seguidos escombros de um exército em retirada haviam atravessado a cidade. Não era uma tropa, mas hordas em debandada. Os homens tinham a barba comprida e suja, uniformes em farrapos, e avançavam com um ar combalido, sem bandeira, sem regimento. Todos pareciam arrasados, esfalfados, incapazes de um pensamento ou de uma iniciativa, caminhando apenas por hábito, e caindo de cansaço tão logo se detinham. Viam-se principalmente reservistas, gente pacífica, rendeiros tranqüilos, curvados sob o peso do fuzil; pequenos moblots alertas, fáceis de assustar e prontos ao entusiasmo, tão dispostos ao ataque quanto à fuga; depois, no meio deles, alguns culotes vermelhos, destroços de uma divisão esfacelada numa grande batalha; artilheiros sombrios alinhados com infantes dos mais variados; e, por vezes, o capacete brilhante de um dragão de passo arrastado que a muito custo seguia a marcha mais lépida dos soldados de linha.
Legiões de franco-atiradores com denominações heróicas – Os Vingadores da Derrota; os Cidadãos do Túmulo; Os Distribuidores da Morte – passavam, por sua vez, com ares de bandidos.
Seus chefes, antigos comerciantes de tecidos ou de grãos, ex-negociante de sebo ou de sabão, guerreiros de circunstância, nomeados oficiais por suas patacas ou pelo comprimento do bigode, cobertos de armas, de flanela e de galões, falavam com uma voz retumbante, discutiam planos de campanha e tencionavam sustentar sozinhos a França agonizante sobre seus ombros de fanfarrões; no entanto, temiam por vezes seus próprios soldados, bandoleiros da pior espécie e quase sempre valentes em excesso, saqueadores e devassos.
Os prussianos iam entrar em Rouen, dizia-se.
A Guarda Nacional, que havia dois meses fazia reconhecimentos muito prudentes nos bosques da redondeza, às vezes fuzilando suas próprias sentinelas e se aprontando para o combate quando algum coelhinho movia-se nas moitas, tinha voltado para casa. Suas armas, seus uniformes, todo seu aparato mortífero com o qual havia bem pouco ela assustava até os marcos das estradas num raio de três léguas, tinham subitamente desaparecido.
 Os últimos soldados franceses acabavam, enfim, de atravessar o Sena para ganhar Pont – Audemer, via Saint – Sever e Bourg – Achar; e, após todos eles, caminhava o general, desesperado, não podendo  tentar nada com aqueles farrapos disparatados, ele próprio desnorteado na grande derrocada de um povo acostumado a vencer e desastradamente batido, apesar da sua legendária bravura; ele ia a pé, entre dois ordenanças.
Depois, uma calmaria profunda, uma espera cheia de medo e de silêncio pairaram sobre a cidade. Muitos burgueses barrigudos, desvirilizados pelo comércio, esperavam ansiosamente os vencedores, temendo que eles considerassem como arma seus espetos ou facões de cozinha.
A vida parecia em suspenso, as lojas fechadas, a rua muda. De quando em quando algum habitante, intimidado pelo silêncio, esgueirava-se ligeiro pelo costado das paredes.
 A angústia da espera fazia desejar a chegada do inimigo.
Na tarde do dia que se seguiu à partida das tropas francesas, alguns ulanos, saídos não se sabe de onde, atravessaram a cidade às pressas. Depois, um pouco mais tarde, uma massa negra desceu a encosta Sainte – Catherine, enquanto duas outras vagas invasoras surgiam pelas estradas de Darnetal e de Boisguillaume. As vanguardas das três corporações encontram-se precisamente ao mesmo tempo na praça da prefeitura, e por todas as ruas vizinhas chegava o Exército alemão, desfiando seus batalhões que faziam ressoar as pedras das ruas sob os passos duros e ritmados.
Gritos de comando numa voz desconhecida e gutural sabiam ao longo das casas, que pareciam mortas e desertas, enquanto, por trás dos postigos fechados, olhos espreitavam aqueles homens vitoriosos, senhores da cidade, das fortunas e das vidas, por “direito de guerra”. Os habitantes, em seus quartos escurecidos, sentiam o desespero que produzem os cataclismos, as grandes convulsões mortíferas da terra, contra os quais toda sabedoria e toda força são inúteis. Pois a mesma sensação reaparece sempre que a ordem estabelecida das coisas é destruída, que a segurança não existe mais, que tudo o que as leis dos homens, ou as da natureza, protegiam encontra-se à mercê de uma brutalidade inconsciente e feroz.
O terremoto esmagando uma população inteira sob as casas que desabam; o rio que transborda e carrega os camponeses afogados junto com os cadáveres dos bois e as vigas arrancadas dos tetos das casas, ou o exército glorioso massacrando os que se defendem, levando os outros como prisioneiros, pilhando em nome do Sabre e agradecendo a um Deus ao som do canhão, todas são calamidades tão pavorosas que confundem qualquer crença na justiça eterna, qualquer confiança que nos ensinam a ter na proteção dos céus e na razão do homem.Mas em cada porta batiam pequenos destacamentos, que depois desapareciam dentro das casas. Era a ocupação após a invasão. E começava para os vencidos o dever de serem amáveis com os vencedores.
Passado algum tempo, uma vez desaparecido o primeiro terror, uma nova calmaria se estabeleceu. Em muitas famílias o oficial prussiano comia à mesa.
Às vezes era bem – educado e, por gentileza, lastimava pela França, falava de sua repugnância por tomar parte daquela guerra. As pessoas ficavam reconhecidas por aquele sentimento; e além do mais, um dia ou outro bem que se podia precisar de sua proteção. Agradando-o, talvez não ficassem com tantos homens para alimentar. E por que magoar alguém de quem se dependia inteiramente? Agir dessa maneira seria menos bravura do que temeridade. E a temeridade não é mais um defeito dos burgueses de Rouen, como no tempo das heróicas defesas que celebrizavam a cidade. Dizia-se enfim, razão suprema tirada da urbanidade francesa, que continuaria bem permitido ser cortês com o soldado estrangeiro dentro de casa, desde que não se mostrassem íntimos em público. Lá fora não se conheciam mais, mas em casa se papeava com prazer, e o alemão permanecia por mais tempo, todas as noites, a se esquentar diante do fogo comum.
A cidade até retomava, aos poucos, seu aspecto costumeiro. Os franceses ainda não saíam muito, mas os soldados prussianos fervilhavam nas ruas. De resto, os oficiais de hussardos azuis, que arrastavam com arrogância pelas calçadas suas grandes ferramentas de morte, não pareciam ter pelos simples cidadãos muito mais desprezo do que os oficiais do corpo de caçadores, que, no ano anterior, bebiam nos mesmos cafés.
No entanto, havia alguma coisa no ar, alguma coisa de sutil e de desconhecido, uma atmosfera estrangeira intolerável, como um cheiro espalhado, o cheiro de invasão. Ele preenchia as casas e as praças públicas, modificava o gosto dos alimentos, dava a impressão de se estar em viagem, muito longe, em tribos bárbaras e perigosas.
Os vencedores exigiam dinheiro, muito dinheiro. Os habitantes pagavam sempre; eram ricos, aliás. Mas um comerciante normando, quando mais se torna opulento, mais sofre com qualquer privação, com qualquer parcela de sua fortuna que vê passar às mãos de outro.
Entretanto, as duas ou três léguas abaixo da cidade, seguindo o curso do rio em direção a Croisset, Dieppedalle ou Biessart, freqüentemente os barqueiros e os pescadores puxavam do fundo da água algum cadáver de um alemão inchado dentro do seu uniforme, morto a facada ou a pontapés, a cabeça esmagada por uma pedra, ou arremessado na água com um empurrão do alto de uma ponte.
O lodo do fundo do rio sepultava aquelas vinganças obscuras, selvagens e legítimas, heroísmos desconhecidos, ataques mudos, mais perigosos que as batalhas à luz do dia e sem a retumbância da glória.
Pois o ódio ao Estrangeiro sempre arma alguns Intrépidos prontos a morrer por uma Idéia.
Enfim, como os invasores, mesmo que sujeitando a cidade a sua inflexível disciplina, não tinham cometido nenhum dos horrores que a fama lhes fazia cometer ao longo da sua marcha triunfal, tomou-se coragem, e a necessidade dos negócios excitou de novo o coração dos comerciantes locais. Alguns deles tinham grandes interesses empenhados no porto de Havre, que o Exército francês ocupava, e quiseram tentar chegar até lá indo por terra a Dieppe, onde embarcariam.
Utilizaram-se da influência dos oficiais alemães com quem tinham travado conhecimento, e uma autorização para viajar foi obtida com o general – em – chefe.
Logo, uma vez reservada uma grande diligência de quatro cavalos para a viagem, e dez pessoas se inscrito com o condutor, resolveu-se partir numa terça – feira de manhã, antes do raiar do dia para evitar qualquer aglomeração.
Havia já algum tempo que a geada tinha endurecido a terra, e na segunda – feira, perto das três horas, grandes nuvens escuras vindas do norte trouxeram a neve, que caiu sem interrupção durante toda a tarde e toda a noite.
Às quatro e meia da manhã os viajantes se reuniram no pátio do Hotel da Normandia, onde deviam embarcar.
Estavam ainda cheios de sono e tiritavam de frio sob suas mantas. Não se enxergava direito na escuridão, e o amontoado de pesadas roupas de inverno deixava todos aqueles corpos parecidos aos de padres obesos em suas longas sotainas. Mas dois homens se reconheceram um terceiro abordou-lhes e eles conversaram: “levo a minha mulher”, disse um deles. “A mesma coisa eu”. “Eu também”. O primeiro acrescentou: “Não voltaremos para Rouen, e se os prussianos se aproximarem do Havre partiremos para a Inglaterra”. De naturezas parecidas, todos tinham os mesmos projetos.
No entanto, nada de se atrelar o carro. De vez em quando uma pequena lanterna carregada por um cavalariço saía de uma porta escura para imediatamente desaparecer em outra. Patas de cavalos socavam a terra, amortecidas pelo estrume das estrebarias, ouvia-se uma voz de homem falando aos animais, xingando, no fundo do pátio. Um leve murmúrio de guizos anunciou que carregavam os arreios; e o murmúrio tornou-se em seguida uma vibração clara e contínua, ritmado pelo movimento do animal, por vezes estacando, depois retomando numa brusca sacudida acompanhada do ruído surdo de um casco ferrado batendo no chão.
De súbito, a porta se fechou. Todo o ruído cessou. Os burgueses, gelados, calaram-se: permaneciam imóveis e tesos.
Um véu contínuo de flocos brancos descia sobre a terra, cintilando sem para; ele apagava as formas das coisas, polvilhava tudo com uma espuma de gelo, e só o que se ouvia no grande silêncio da cidade cala e sepultada sob o inverno era aquele deslizar vago, indefinível e oscilante da neve que cai, mais sensação do que ruído, confusão de partículas sem peso que pareciam preencher o espaço, cobrir o mundo.
 O homem reapareceu, com sua lanterna, puxando por uma corda um cavalo triste, que não vinha de bom grado. Colocou-se contra o timão, amarrou as correias, deu várias voltas ao redor para garantir os arreios, demoradamente, pois só podia usar uma das mãos, já que a outra segurava a lanterna. Quando ia buscar o segundo anima, percebeu todos os passageiros imóveis, já brancos de neve, e disse-lhes: “Por que não sobem no carro? Pelo menos estarão abrigados”.
Não tinham pensado naquilo, sem dúvida, e precipitaram-se. Os três homens instalaram suas mulheres no fundo, subiram em seguida; depois, as outras formas imprecisas e encapuzadas tomaram os últimos lugares sem trocar nenhuma palavra.
O assoalho estava coberto de palha, onde os pés se afundaram. As senhoras do fundo, tendo trazido pequenos aquecedores de cobre com carvão químico, acenderam seus aparelhos e, durante algum tempo e em voz baixa, enumeraram-lhes as vantagens, se repetindo coisas que todas já sabiam desde longa data.
Enfim, estando a diligência atrelada com seis cavalos em vez de quatro, por causa da puxada mais difícil, uma voz de fora perguntou: “Todo mundo subiu?”.
Uma voz de dentro respondeu: “Sim”. E partiram.
O carro avançava lentamente, muito lentamente, passo a passo. As rodas se afundavam na neve; o cofre inteiro gemia com estalos surdos; os animais deslizavam, ofegavam, fumegavam, e o gigantesco chicote do cocheiro estalava sem parar, rodopiando de todos os lados, se enredando e se desenrolando como uma fina serpente, e fustigando bruscamente algum lombo carnudo que então se retesava num esforço mais violento.
Mas o dia crescia imperceptivelmente. Aqueles suaves flocos que um viajante, rouenense puro – sangue comparara a uma chuva de algodão não caíam mais. Um clarão sujo, filtrado por grossas nuvens escuras e pesadas, tornava mais brilhante a brancura dos campos, onde ora surgia uma linha de árvores altas cobertas pela geada, ora uma choupana com um capuz de neve.
No carro, as pessoas se olhavam com curiosidade, sob a triste claridade daquele amanhecer.
Bem ao fundo, nos melhores lugares, cochilavam, um de frente para o outro, o Sr. E a Sra. Loiseau, atacadistas de vinho da rua Grand – Pont.
Antigo empregado de um patrão falido nos negócios, Loiseau comprara o estoque e fizera fortuna. Vendia muito barato vinho muito ruim aos pequenos vendeiros do interior, e entre amigos e conhecidos passava por um malandro esperto, um verdadeiro normando cheio de astúcia e bom humor.
Sua reputação de trapaceiro estava tão bem estabelecida que uma noite, nos salões da prefeitura regional, o Sr. Tournel, autor de fábulas e de canções, espírito mordente e fino, uma glória local, percebendo as senhoras um pouco sonolentas, propusera uma partida de “Loiseau vole”; a piada voou através dos salões do prefeito, e depois, ganhando os da cidade, fizera rir durante um mês toda a gente da província.
Loiseau era, além disso, célebre por pregar peças de toda natureza, por suas pilhérias, boas ou de mau gosto, e ninguém conseguia falar dele sem acrescentar imediatamente: “Ele é impagável, esse Loiseau”.
Baixinho, tinha uma barriga em forma de balão encimada por uma face corada entre duas costeletas grisalhas.
Sua mulher, grande, encorpada, resoluta, de voz forte e decisão rápida, era a ordem e a aritmética do estabelecimento comercial que ele animava com sua vivacidade prazenteira.
Ao lado deles postava-se, mais digno, pertencente a uma casta superior, o Sr. Carré – Lamadon, homem considerado, estabelecido no ramo do algodão, proprietário de três fiações, oficial da Legião de Honra e membro do Conselho geral. Durante todo o período do Império permanecera chefe da oposição indulgente, só para lhe pagarem mais caro sua adesão á causa que combatia com armas corteses, conforme sua própria expressão. A Sra. Carré – Lamadon, muito mais jovem que o marido, permanecia a consolação dos oficiais de boa família enviados à guarnição de Rouen.
Sentada diante do esposo, toda pequenina, toda engraçadinha, bonitinha, enovelada em suas peles, ela observava com olhar consternado o lamentável interior do veículo.
Seus vizinhos de banco, o conde e a condessa Hubert de Bréville, portavam um dos nomes mais antigos e mais nobres da Normandia. O conde, velho fidalgo semelhança natural com o rei Henri IV, que, segundo uma lenda gloriosa para a família, engravidara uma dama de Bréville, cujo marido, por causa disso, tornara-se conde e governador de província.
Colega do Sr. Carré – Lamadon no conselho geral, o conde Hubert representava o partido orleanista no departamento. A história de seu casamento com a filha de um pequeno armador de Nantes resultara sempre um tanto misteriosa.
Mas como a condessa tinha um aspecto muito distinto, recebia melhor do que ninguém, e passeava até por ter sido amada por um dos filhos de Louis – Philippe, toda a nobreza lhe festejava, e seu salão permanecia o primeiro da região, o único onde se conservava a velha galanteria, e cuja entrada era difícil.
A fortuna dos Bréville, toda em imóveis, atingia, diziam, quinhentas mil libras de renda.
Aquelas seis pessoas compunham o fundo do veículo, o lado da sociedade endinheirada, serena e forte, gente honesta, com autoridade, que tem Religião e Princípios.
Por um estranho acaso todas as mulheres encontravam-se no mesmo banco; e a condessa tinha ainda como vizinhas duas freiras que debulhavam longos rosários murmurando pai – nossos e ave – marias. Uma era velha, com a face estragada pela varíola como se tivesse recebido de bem perto uma metralha de chumbo em pleno rosto.  A outra, muito frágil, tinha uma bela e combalida cabeça, e um peito de tuberculosa carcomido por essa fé devastadora que faz os mártires e os iluminados.
À frente das duas religiosas, um homem e uma mulher atraíam todos os olhares.
O homem, bastante conhecido, era Cornudet, o democra, o terror das gentes de bem. Havia vinte anos ele ensopava sua barba ruiva nos chopes de todos os cafés democratas. Com os irmãos e amigos, liquidara uma bela fortuna, herança do pai, antigo confeiteiro; e esperava impacientemente pela República para obter enfim o lugar merecido por tantas despesas revolucionárias. No Quatro de Setembro, vítima de uma brincadeira talvez, ele se imaginara nomeado prefeito, mas quando quis assumir as funções os contínuos, que acabaram como os únicos donos do lugar, negaram-se a reconhecê-lo, e ele foi obrigado a se retirar. De resto, muito bom rapaz, inofensivo e prestimoso, tinha se dedicado com um ardor incomparável á organização da defesa. Mandara cavar buracos nos campos, derrubar todos os arbustos das florestas vizinhas, semeara armadilhas por todas as estradas e, diante da aproximação do inimigo e satisfeito com seus preparativos, recuara prontamente para a cidade. Agora julgava-se mais útil no Havre, onde novas trincheiras iam ser necessárias.
A mulher, uma dessas a quem chamam de libertina, era célebre por sua corpulência precoce, que lhe valera o apelido de Bola de Sebo. Pequena, toda rechonchuda, gorducha mesmo, com dedos inchados e estrangulados nas falanges, semelhantes a réstias de salsichas curtas, com uma pele luzente e esticada, um pescoço enorme que transbordava o vestido, ela continuava, no entanto, apetitosa e solicitada, de tanto que seu frescor dava prazer á vista. Seu rosto era uma maça vermelha, um botão de peônia prestes a florescer, e ali se abriam, em cima, uns olhos negros magníficos, cobertos por grandes cílios espessos que os mergulhavam na sombra; embaixo, uma boca encantadora, estreita, úmida para o beijo, recheada com dentinhos brilhantes e microscópios.
Além disso, ela era, diziam, cheia de qualidades inestimáveis.
Assim que foi reconhecida, correram cochichos entre as mulheres direitas, e as expressões “prostituta” e “vergonha pública” foram sussurradas tão alto que ela levantou a cabeça. Então passeou por sobre os vizinhos um olhar tão provocador e intrépido que imediatamente um grande silêncio se instalou, e todo mundo baixou os olhos, à exceção de Loiseau, que a espreitava com ar animado.
Mas em seguida a conversa foi restabelecida entre aquelas três mulheres que a presença da outra fizera subitamente amigas, quase íntimas. Elas deviam formar, parecia-lhes, como que uma liga de suas dignidades de esposas diante daquela vendida sem – vergonha; porque o amor legal sempre desdenha seu colega libertino.
Os três homens também, unidos por um instinto conservador em face de Cornuder, falavam de dinheiro com certo tom de desdém pelos pobres. O conde Hubert contava dos danos que sofrera por causa dos prussianos, das perdas que resultariam do gado roubado e das colheitas arruinadas, e falava com uma segurança de grande senhor, dez vezes milionário, que aquelas devastações afetariam apenas um ano. O Sr. Carré – Lamadon, bastante experiente na industria algodoeira, tivera o cuidado de enviar seiscentos mil francos para a Inglaterra, uma reserva que guardava para qualquer eventualidade. Quando a Luiseau, arranjara-se para vender à Intendência francesa todos os vinhos ordinários que lhe restavam no estoque, de maneira que o Estado lhe devia uma quantia formidável, na qual ele esperava pôr as mãos quando chegasse ao Havre.
E todos os três trocavam olhares rápidos e amigáveis. Embora de posições sociais diferentes, sentiam-se irmanados pelo dinheiro, da grande maçonaria dos que possuem que fazem retinir o ouro quando metem a mão no bolso do colete.
O carro seguia tão lentamente que às dez da manhã ainda não haviam percorrido quatro léguas. Os homens desceram três vezes para subir encostas a pé.
Começavam a inquietar-se, pois deviam almoçar em Tôtes e já não tinham esperança de lá chegar antes da noite. Cada qual espreitava para enxergar alguma taberna à beira da estrada, quando a diligência se afundou num monte de neve, e foram necessárias duas horas para desatolá-la.
A fome aumentava, confundia os espíritos, e nenhuma baiúca, nenhum boteco aparecia – o avanço dos prussianos e a passagem das tropas francesas esfomeadas tinham espantado os negócios.
Os senhores correram ás granjas da beira do caminho em busca de provisões, mas nem mesmo pão encontraram, pois o camponês, desconfiado, escondia suas reservas com medo de ser pilhado pelos soldados que, nada tendo para pôr na boca, tomavam à força o que encontravam pela frente.
 Perto de uma da tarde, Loiseau anunciou que, decididamente, tinha um belo dum buraco no estômago. Todo mundo sofria como ele havia muito tempo, e a violenta necessidade de comer, sempre crescente, liquidara a conversa.
De vez em quando alguém bocejava; quase imediatamente outro o imitava, e cada qual ao seu turno, segundo o caráter, a educação e a posição social, abria a boca com estardalhaço ou discretamente, levando rápido a mão àquela cova escancarada de onde saía um vapor.
 Várias vezes Bola de Sebo se inclinou como se procurasse alguma coisa embaixo da saia. Hesitava um segundo, olhava para os vizinhos, depois se punha outra vez direita, tranquilamente. Os rostos estavam pálidos e crispados. Loiseau disse que pagaria mil francos por um pedaço de presunto. Sua mulher fez um gesto como para protestar, depois e acalmou. Não podia ouvir falar em dinheiro desperdiçado e não suportava nem mesmo as brincadeiras a respeito do tema.
“A verdade é que não me sinto bem”, disse o conde, “como é que não pensei em trazer mantimentos?”. Todos se faziam a mesma recriminação.
No entanto Cornudet tinha um cantil cheio de rum; ofereceu: recusaram friamente. Apenas Loiseau aceitou um golezinho e, devolvendo o cantil, agradeceu: “Tem-se que reconhecer que isso é bom, esquenta e engana o estômago”.
O álcool deixou-o bem – humorado, e propôs que fizessem como no navio da canção: comer o mais gordo dos passageiros. Aquela alusão indireta a Bola de Sebo chocou os bem – educados. Não lhe responderam; apenas Cornudet sorriu. As duas freiras tinham parado de desfiar seus rosários e, com as mãos enfiadas nas mangas, mantinham-se imóveis, baixando obstinadamente os olhos, sem dúvida ofertando aos céus o sofrimento que lhes era enviado.
Enfim, às três horas, quando se encontravam no meio de uma planura interminável, sem uma só aldeia à vista, Bola de Sebo se abaixou de repente e puxou de baixo do banco um grande cesto coberto por um guardanapo branco.
Tirou primeiro um pratinho de faiança, uma fina taça de prata, depois uma grande terrina com dois frangos trinchados e conservados na própria gordura; e percebia-se ainda uma porção de coisas boas enroladas dentro daquele cesto: patês, frutas, guloseimas, alimentos preparados para uma viagem de três dias, para não ter que recorrer às cozinhas dos albergues. Quatro gargalos de garrafas despontavam entre os embrulhos de comida. Ela pegou uma asa de frango e, delicadamente, pôs-se a comê-la com um desses pãezinhos que na Normandia a gente chama “Regence”.
Todos os olhares se dirigiam para ela. Em seguida o cheiro se espalhou, dilatando as narinas, fazendo vir às bocas uma saliva abundante, com uma contração dolorosa da mandíbula abaixo das orelhas. O desprezo das senhoras por aquela moça tornava-se feroz, como um desejo de matá-la ou de jogá-la sob as rodas do carro, na neve, ela, a sua taça, seu cesto e sua comida.
Mas Loiseau devorava com olhos a terrina de frango. Ele disse: “Que beleza! A madame foi mais precavida do que nós. Há pessoas que sempre pensam em tudo”. Ela ergueu a cabeça para ele: “Se o senhor quiser...É duro ficar de jejum desde a manhã”. Ele saudou : “Quer saber uma coisa, francamente? Não recuso. Não agüento mais. Na guerra se faz como na guerra, não é madame?”.
E lançando um olhar em torno, acrescentou: “em momentos como esse é uma maravilha encontrar pessoas que nos façam uma gentileza”. Ele trazia um jornal, que estendeu para não manchar a calça, e, com a ponta da faca que sempre levava no bolso, retirou uma coxa bem reluzente do interior da geléia de gordura, cortou-a com os dentes e depois a mastigou com uma satisfação tão evidente que cortou-a com os dentes e depois a mastigou com uma satisfação tão evidente que um grande suspiro de angústia fez-se ouvir dentro do veículo.
Bola de Sebo, com voz humilde e delicada, convidou as freiras para dividir o lanche com ela. As duas aceitaram de imediato, e, sem erguer os olhos, puseram-se a comer muito ligeiro, após terem balbuciado agradecimentos. Cornudet também não recusou as ofertas da vizinha, e formaram, com as religiosas, uma espécie de mesa estendendo jornais no colo.
As bocas se abriam e se fechavam sem parar, engoliam, mastigavam, devoravam ferozmente. Loiseau, no seu canto, trabalhava duro, e em voz baixa incentivou a mulher a fazer o mesmo. Ela resistiu bastante tempo, mas após uma crispação que lhe percorreu as entranhas, cedeu. Então o marido, arredondando a frase, perguntou se sua “encantadora companheira” lhe permitia oferecer um pedacinho à Sra. Loiseau. “Mas claro, certamente, senhor”, respondeu Bola de Sebo, com um sorriso amável, estendendo-lhe a terrina.
Houve um embaraço quando abriram a primeira garrafa de Bordeaux: havia apenas uma taça. Passaram-na de mão em mão, depois de enxugada. Apenas Cornudet, sem dúvida para fazer um galanteio, pousou os lábios no mesmo lugar ainda úmido dos lábios da vizinha.
Então, cercados por gente que alimentava, sufocados pelas emanações das comidas, o conde e a condessa de Bréville, assim como o Sr. e Sra. Carré – Lamadon sofriam este odioso suplício que conservou o nome de Tântalo. De repente, a jovem senhora do empresário soltou um suspiro que fez com que todos se voltassem para ela; estava tão branca quanto à neve lá fora; seus olhos se fecharam, a cabeça pendeu; tinha desmaiado. O marido, desorientado, pedia socorro a todo mundo. Todos se descontrolavam, quando a mais velha das freiras, segurando a cabeça da doente, pôs entre seus lábios a taça de Bola de Sebo e fez com que ela bebesse algumas gotas de vinho. A bela senhora se mexeu, abriu os olhos, sorriu, e com uma voz fraca disse que se sentia muito bem agora. Mas, para que aquilo não se repetisse, a religiosa obrigou-a a beber um copo cheio do Bordeaux, e acrescentou: “É fome, só isso”.
Então bola de Sebo, vermelha e confusa, olhando para os quatro passageiros que continuavam em jejum, balbuciou: “Meu Deus, se eu pudesse oferecer a esses cavalheiros e a essas damas...”. Calou-se, temendo um ultraje. Loiseau tomou a palavra: “Eh caramba, numa situação dessas todo mundo é irmão e deve se ajudar. Vamos, madames, nada de cerimônias: aceitem, que diabo! Sabemos se vamos ao menos encontrar uma casa para passar a noite? Na marcha em que vamos, não chegaremos a Tôtes antes do meio-dia de amanhã”. Vacilavam, ninguém ousando assumir a responsabilidade do “sim”. Mas o conde resolveu a questão. Virou-se para aquela moça gorda e intimidada e, assumindo seu grande ar de fidalgo, disse: “Nós aceitamos reconhecidos, madame”.
 Apenas o primeiro passo era difícil. Um vez transposto o Rubicon, as pessoas se soltaram. O cesto foi esvaziado. E ainda havia sobrado um patê de foie gras, um patê de calhandra, um pedaço de língua de boi defumada, peras de Crassane, um naco de pont-l’ évêque, bolinhos e um pote de pepinos e cebolas no vinagre: Bola de Sebo, como todas as mulheres, adorava as conservas.
Mas não se podia comer as provisões daquela moça sem lhe dirigir a palavra.
Então conversaram, inicialmente com reserva, depois, como ela se portava muito bem, soltaram-se mais. As Sras. De Bréville  e carré – Lamadon, que possuíam muito savoir – vivre,mostraram-se afáveis e delicadas. Sobretudo a condessa demonstrou essa condescendência amável das damas muito nobres, que nenhum contato é capaz de manchar, e foi adorável. Mas a corpulenta Sra. Loiseau, que tinha uma alma de sargento, permaneceu azeda, falando pouco e comendo muito.
Conversaram sobre a guerra, naturalmente. Relataram feitos horríveis dos prussianos, lances de bravura dos franceses, e todas aquelas pessoas que ali estavam a fugir, renderam tributo á coragem dos outros. Rapidamente começaram as histórias pessoais, e Bola de Sebo contou – com verdadeira emoção, com aquele calor nas palavras que por vezes as moças desse tipo têm para exprimir seus arroubos naturais – como havia deixado Rouen: “Primeiro pensei que poderia ficar”, disse. “Tinha uma casa cheia de mantimentos, e preferia alimentar alguns soldados a emigrar para não sei onde. Mas quando vi os tais prussianos, aquilo foi mais forte do que eu! Me ferveu o sangue, e chorei de vergonha o dia inteiro. Ah!  Se eu fosse homem! Via-os da minha janela, aqueles grandes porcos com seus capacetes pontudos, e minha empregada me segurava as mãos para me impedir de atirar-lhes os móveis por cima. Depois vieram uns para se alojar em minha casa; então atire-me à garganta do primeiro. Não são mais difíceis de estrangular do que qualquer outro! E teria acabado com aquele se não tivessem me puxado pelo cabelo. Fui obrigada a me esconder depois disso. Por fim, quando encontrei uma oportunidade, fui embora, e aqui estou.”
Felicitaram-na bastante. Ela crescia na estima de seus companheiros de viagem, que não tinham se mostrado tão valentes; e Cornudet, escutando-a, conservava um sorriso aprovador e benevolente de apóstolo – da mesma maneira um padre escuta um devoto louvar o nome de Deus, pois os democratas barbudos têm o monopólio do patriotismo como homens de batina têm o da religião. Depois ele falou em tom doutrinário, com a ênfase aprendida nas declarações coladas nas paredes todos os dias, e terminou com um pequeno trecho de eloqüência onde esfolava magistralmente aquele “crápula do Badinguet”. Mas imediatamente Bola de Sebo se ofendeu, pois era bonapartista. Ficou vermelha como um pimentão e, gaguejando indignada: “Queria ter visto vocês no lugar dele, vocês todos. Isso é que teria sido bonito, ah sim! Vocês é que traíram esse homem! Se fôssemos governados por vagabundos como vocês, a única coisa a fazer seria ir embora da França!”. Cornudet, impassível, conservava um sorriso desdenhoso e superior, mas percebia-se que os palavrões não tardariam, quando o conde se interpôs e acalmou, não sem custo, a moça exasperada, proclamando com autoridade que todas as opiniões sinceras eram respeitáveis. Entretanto a condessa e a empresária, que traziam na alma o ódio irracional das pessoas de bem pelas coisas da República e aquela instintiva ternura que todas as mulheres alimentam pelos governos despóticos e de penacho, sentiam-se, mesmo a contragosto, atraídas por aquela prostituta cheia de dignidade, cujos sentimentos se pareciam tanto com os delas.
O cesto estava vazio. Entre dez, tinham-no esgotado sem dificuldade, lamentando que não fosse maior. A conversa continuou por mais algum tempo, um pouco esfriada, no entanto, após terem comido.
A noite caía, a escuridão pouco a pouco tornou-se profunda, e o frio, mais sensível durante a digestão, causava arrepios em Bola de Sebo, apesar de sua gordura. Então a Sra. de Bréville lhe ofereceu seu aquecedor, cujo carvão fora renovado várias vezes desde a manhã. A outra aceitou imediatamente, pois sentia os pés gelados. As Sras. Carré Lamadon e Loiseau deram os seus às duas religiosas.
O cocheiro acendera as lanternas. Elas iluminavam com um clarão intenso uma nuvem de vapor acima da garupa suada dos cavalos, e dos dois lados da estrada a neve parecia escoar-se sob o reflexo móvel das luzes.
Não se distinguia mais nada no interior do veículo; de repente houve um movimento entre Bola de Sebo e Cornudet, e Loiseau, cujo olho perscrutava a sombra, julgou ver o homem de longa barba se afastar prontamente, como se tivesse recebido um belo de um golpe a seco.
Pequenos pontos luminosos apareceram à frente, na estrada. Era Tôtes. Tinham rodado durante onze horas, o que, com as duas horas de repouso feitas em quatro tempos para que os cavalos pudessem respirar e comer um pouco de aveia, perfaziam catorze. Entraram na vila e pararam diante do Hotel Du Commerce.
A portinhola se abriu! Um ruído bastante conhecido fez tremer todos os viajantes; eram as batidas de um sabre contra o chão. Em seguida a voz de um alemão gritou alguma coisa.
Embora a diligência estivesse parada, ninguém descia como se esperassem um massacre à saída. Então o condutor apareceu, carregando na mão uma das lanternas, que subitamente iluminou até o fundo do carro as duas filas de rostos assustados, cujas bocas estavam abertas e os olhos arregalados de surpresa e pavor.
Em plena luz, ao lado do cocheiro, estava um oficial alemão: um rapaz alto, excessivamente magro e louro, apertado em seu uniforme como uma jovem em seu corpete, e com o boné chato e oleado posto de través, o que lhe dava ares de um porteiro de hotel inglês. Seu bigode desmesurado, com pelos compridos e retos, que se adelgaçava indefinidamente dos dois lados e terminava em um só fio louro, tão fino que não se via o final, parecia pesar nos cantos da boca e repuxar a bochecha, imprimindo aos lábios uma prega descaída.
Num Francês de alsaciano, convidou os passageiros a sair, dizendo num tom áspero: “Fôces querrem tescer, tamas e cafalheirros?”.
As duas freiras obedeceram primeiro, com uma docilidade de santas mulheres habituadas a todas as submissões. O conde e a condessa apareceram logo depois, seguidos do empresário e sua mulher, depois Loiseau empurrando à frente sua grande cara – metade. Este, pondo o pé no chão, disse ao oficial: “Boa noite, senhor”, muito mais por prudência do que por polidez. O outro, insolente como os todo- poderosos, olhou-o sem responder:
Bola de Sebo e Cornudet, embora próximos à portinhola, desceram por último, graves e altivos diante do inimigo. A gorda menina tratava de se controlar e de se mostrar calma; o democrata, com uma espécie de mão trágica e um pouco trêmula, torturava sua longa barba arruivada. Queriam manter a dignidade, entendendo que nesses tipos de encontros cada qual representa um pouco o seu país; e ambos revoltados pela docilidade de seus companheiros, ela, de seu lado, tratava de se mostrar mais distinta do que suas vizinhas, as mulheres direitas, enquanto ele, sabendo bem que devia dar o exemplo, continuava em todas as suas atitudes a missão de resistência começada com o bloqueio das estradas.
Entraram na vasta cozinha do albergue, e o alemão, após ter feito apresentaram-lhe a autorização para viajar assinada pelo general – em – chefe e onde estavam mencionados os nomes, as características físicas e a profissão de cada viajante, examinou demoradamente todo mundo, comparando as pessoas com as informações escritas.
Depois disse brusco: “Está pom”, e desapareceu.
Então se pode respirar. Tinha-se fome de novo; foi pedido o jantar. Uma meia hora era necessária para aprontá-lo, e, enquanto dois serventes pareciam tratar disso, foram ver os quartos. Achavam-se todos dispostos num longo corredor que terminava numa porta envidraçada e marcada com o número falante.
Enfim iam sentar à mesa quando o dono do albergue surgiu na sala. Era um antigo comerciante de cavalos, um gordo asmático que estava sempre com o peito assoviando, pigarreando, com uma tosse rouca e catarrenta. Seu pai transmitira-lhe o nome de Follenvie.
Ele perguntou:
“Senhorita Élisabeth Rousset?”
Bola de Sebo estremeceu, virou-se:
“Sou eu”.
“Mademoiselle, o oficial prussiano deseja lhe falar imediatamente.”
“Falar comigo?”  
“Sim, se você é mesmo a senhorita Élisabeth Rousset.”
Ela ficou confusa, refletiu um segundo, depois disse claramente:
“É possível, mas não vou”.
Houve um alvoroço em torno dela; cada qual discutia e procurava entender a causa daquela ordem. O conde se aproximou:
“A senhora está errada, madame, pois sua recusa pode trazer dificuldades consideráveis, não somente para a senhora mas inclusive para todos os seus acompanhantes. Não se deve jamais resistir às pessoas que são mais fortes. Certamente que essa rogatória não apresenta nenhum perigo; sem dúvida é por causa de alguma formalidade esquecida”.
Todo mundo o apoiou, fizeram súplicas a ela, instigaram-lhe, pregaram-lhe um sermão e terminaram por convencê-la, pois todos temiam as complicações que uma decisão impensada poderia resultar. Ela disse, enfim:
“É por vocês que faço isso, esteja certos!”
A condessa tomou-lhe a mão:
“E nós lhe agradecemos.”
Saiu. Esperaram-na para sentarem à mesa. Cada qual se lamentava por não ter sido escolhido no lugar daquela menina violenta e irascível, e preparava mentalmente alguma resposta servil para o caso de ser chamado.
Mas ao cabo de dez minutos ela reapareceu, ofegante, vermelha, exasperada a ponto de sufocar. Balbuciava: “Ah! Que canalha! Que canalha!”.
Todos acorreram para saber, mas ela não disse nada; e como o conde insistia, respondeu com muita dignidade: “Não, isso não lhe diz respeito. Não posso falar”.
 Sentaram-se então em torno de uma grande sopeira que exalava um perfume de couve. Apesar daquele susto, o jantar foi divertido. A sidra era boa, o casal Loiseau e as freiras beberam dela, por economia. Os outros pediram vinho. Cornudet pediu cerveja. Ele tinha um jeito especial de abrir a garrafa, de fazer espuma ao servir, de examiná-la inclinando o copo, que em seguida erguia contra a luz para avaliar bem a cor. Quando bebia, sua longa barba – que conservava o mesmo matiz da bebida adorada – parecia estremecer de ternura; seus olhos tornavam-se vesgos no esforço de não perder de vista o chope, e naquele instante ele dava a impressão de estar cumprindo a única função para a qual tinha nascido. Dir-se-ia que criava em seu espírito uma aproximação e uma espécie de afinidade entre as duas grandes paixões que ocupavam toda a sua vida; a Cerveja e a Revolução; e certamente não podia degustar uma sem pensar na outra.
O Sr. e Sra. Follenvie jantavam bem na ponta da mesa. O homem, arquejando como uma locomotiva estropiada, tinha demasiada dificuldade no peito para poder falar enquanto comia; mas a mulher não se calava nunca. Contou todas as suas impressões da chegada dos prussianos, o que faziam, o que diziam, execrando-lhes, primeiro porque custavam-lhe dinheiro, e depois porque tinha dois filhos no Exército. Dirigia-se principalmente à condessa, lisonjeada por conversar com uma dama daquele naipe.
Depois baixava a voz para falar as coisas mais delicadas, e de vez em quando seu marido a interrompia: “Seria melhor se se calasse, madame Follenvie”. Mas ela não dava a mínima importância e continuava:
“Sim, madame, essa gente só o que faz é comer batata com carne de porco, e depois é carne de porco com batata. E não vá pensar que são limpos! Ah, não!
Fazem porcaria por todos os cantos, desculpe o termo, mas é isso mesmo. E se a senhora os visse fazer o exercício deles, durante horas e horas, todos os dias; ficam todos ali, num campo: e anda para frente, e anda para trás, e vira para lá, e vira para cá. Se pelo menos cultivassem a terra ou se trabalhassem nas estradas lá do país deles! Mas não, madame, essa soldadesca aí, isso ninguém aproveita!
E o pobre do povo ainda tem que alimentá-los. Para quê? Para que não apreendam outra coisa? Só sabem massacrar! Não passo de uma velha sem educação, concordo, mas quando vejo como estragam a saúde a patear da manhã à noite, penso cá comigo: Quando há gente que faz tanta descoberta que pode ser útil, tem que ter esses outros que se esforçam tanto para ser maus! Francamente, não é uma abominação isso de matar as pessoas? Que seja prussiano, ou inglês, ou então polonês, ou Francês? Se a gente se vinga de alguém que nos prejudicou, é ruim, pois nos condenam; mas quando exterminam nosso filhos a tiro de fuzil como se fossem perdizes, aí então é bom? Sim, pois dão-se condecorações ao que mais liquida! Não, veja bem, madame, nunca vou entender isso!”
Cornudet levantou a voz:
“A guerra é uma barbárie quando se ataca um vizinho pacífico; é um dever sagrado quando se defende a pátria.”
A velha mulher baixou a cabeça:
“Sim, quando a gente se defende, é outra coisa; mas, antes, não seria melhor matar todos os reis que fazem isso por puro prazer?”
O olhar de Cornudet se inflamou:
“Bravo, cidadã!”
O Sr. Carré – Lamadon refletia profundamente. Embora fosse fanático pelos ilustres capitães, o bom senso daquela camponesa o fazia pensar na fartura que traria a um país tamanha quantidade de braços desocupados, e conseqüentemente ruinosos, se toda aquela força que se mantinha improdutiva fosse empregada nas grandes obras industriais que precisarão de séculos para ser feitas.
Mas Loiseau, deixando o seu lugar, foi conversar em voz baixa com o albergueiro. O gordo ria, tossia, cuspia; a enorme barriga pulava de alegria ao ouviras piadas do vizinho, e comprou-lhe seis barricas de Bordeaux para a primavera, quando os prussianos já teriam partido.
Mal terminada a ceia, como estavam mortos de cansaço, foram se deitar.
No entanto Loiseau, que tinha prestado atenção às coisas, deixou a esposa na cama e colou, ora ouvido, ora o olho, no buraco da fechadura, tratando de descobrir o que ele chamava de “os mistérios do corredor”.
Ao cabo de mais ou menos uma hora, ouviu uma espécie de frufru, olhou depressa e percebeu Bola de Sebo, que parecia ainda mais cheia sob um penhoar de casimira azul bordado com rendas brancas. Trazia um castiçal na mão e se dirigia ao número redondo do fundo do corredor. Mas uma porta ao lado se entreabriu, e quando ela voltou, após alguns minutos. Cornudet, de suspensórios, a seguia. Falavam baixo, e em seguida estacaram. Bola de Sebo parecia proteger a entrada de seu quarto com energia. Loiseau, infelizmente, não escutava as palavras, mas no fim, como levantavam a voz, ele pôde pescar algumas. Cornudet insistia com veemência. Dizia:
“Vamos, você é boba, que mal vai lhe fazer?”
Ela mantinha o ar indignado e respondeu:
“Não, meu caro, tem momentos em que não se pode fazer essas coisas; e além disso, aqui, seria uma vergonha”.
Ele não entendia, sem dúvida, e perguntou o porquê. Então ela se exaltou, elevando ainda mais o tom:
“Por quê? Você não entende por quê? Quando há prussianos por toda a casa, talvez até no quarto ao lado?”
Ele se calou. Aquele pudor patriótico de marafona que não se deixava acariciar perto do inimigo deve ter despertado em seu coração a dignidade enfraquecida, pois, depois de lhe ter dado apenas um beijo, voltou para o quarto na ponta dos pés.
Loiseau, bem aceso, deixou a fechadura, deu salto batendo os dois calcanhares no ar, enfiou sua touca, ergueu o cobertor sob o qual jazia a dura carcaça de sua companheira, que ele acordou com um beijo, murmurando: “Você me ama. Querida?”
Então a casa inteira se tornou silenciosa. Mas em seguida, em algum lugar indeterminado que podia ser tanto a cave quanto o sótão, ergueu-se um ronco poderoso, regular, monótono, um ruído surdo e prolongado, com estremecimentos de caldeira sob pressão. O Sr. Follenvie dormia.
Como haviam decidido que partiriam no dia seguinte ás oito horas, todo mundo se encontrou na cozinha; mas o carro, cujo toldo tinha uma camada de neve, erguia-se solitário no meio do pátio, sem cavalos e sem condutor. Procuraram em vão este ultimo nas estrebarias, nas forragens, nas cocheiras. Então os homens se decidiram por fazer uma busca nas redondezas e saíram. Viram-se na praça, com a igreja ao fundo e, dos dois lados, uma série de casa baixas onde se percebiam soldados prussianos. O primeiro que enxergaram descascava batatas.
O segundo, mais afastado, lavava o salão do barbeiro. Um outro, barbudo até os olhos, beijava um fedelho que chorava e o embalava no colo, tentando acalmá-lo; e as gordas camponesas cujos homens estavam no “exército da guerra” indicavam por meio de sinais aos vencedores obedientes o trabalho que era preciso fazer: cortar lenha, engrossar a sopa, moer o café; um deles até lavava a roupa de sua hospedeira, uma vovó aleijada.
Surpreso, o conde interrogou o sacristão que saía do presbitério. O velho rato de igreja respondeu: “Oh! Esses aí não são maus; não são prussianos, pelo que se diz. São de mais longe, não sei muito bem de onde; e todos deixaram mulher e filhos em seus país; essa guerra não é nem um pouco engraçada para eles! Tenho certeza que lá também o pessoal se queixa; e isso vai trazer uma bela duma miséria tanto para eles quanto para nós. Aqui, ainda não somos muito desgraçados, por enquanto. Porque eles não fazem mal nenhum e trabalham como se estivessem em suas casas. Veja bem, senhor, entre gente pobre é preciso se ajudar uns aos outros...São os grandões que fazem a guerra”.
Cornudet, indignado com o entendimento cordial estabelecido entre vencedores e vencidos, retirou-se, preferindo se encerrar ao albergue. Loiseau soltou um gracejo; “Eles repovoam”. O Sr. Carré – Lamadon disse é sério:”eles compensam”. Mas não se encontrava o cocheiro. No fim, descobriram-no no café do vilarejo, fraternalmente abancado com o ordenança do oficial. O conde o interpelou:
“Não tínhamos lhe dado ordem de atrelar os cavalos para as oito horas?”
“Ah, sim, isso mesmo, mas depois me deram uma outra.”
“Qual?”
“De não atrelar nem para as oito nem para hora nenhuma.”
“Quem lhe deu essa ordem?”
“O comandante prussiano, ora bolas.”
“Por quê?”
“Sei lá. Vá perguntar a ele. Me proíbem de atrelar, eu não atrelo. E estamos conversados.”
“Foi ele mesmo, em pessoa, quem lhe deu essa ordem?”
“Não senhor, foi o albergueiro que me mandou, da parte dele.”
“Quando?”
“Ontem de noite, quando ia me deitar.”
Os três homens se retiraram, bastantes preocupados.
Perguntaram pelo Sr. Follenvie, mas a empregada respondeu que o senhor, por causa da asma, nunca se levantava antes das dez. E havia até proibido formalmente de acordarem-no, exceto com caso de incêndio.
Quiseram ver o oficial, mas era absolutamente impossível, embora estivesse alojado no albergue. Apenas o Sr. Follenvie tinha autorização para falar-lhe a respeito dos assuntos civis. Então esperaram. As mulheres subiram aos quartos e se distraíram com futilidades.
Cornudet se instalou junto à grande lareira da cozinha, onde ardia um fogo intenso. Mandou trazer uma das mesinhas de café, uma caneca de cerveja e puxou seu cachimbo, que entre os democratas gozava de uma consideração quase igual à sua, como se servisse à pátria ao servir a Cornudet. Era um magnífico cachimbo de magnesita, admiravelmente curado, tão negro quanto os dentes do dono, mas perfumado, recurvo, luzente, acostumado a sua mão, completando-lhe a fisionomia. E permaneceu imóvel, os olhos fixos ora na chama do fogo, ora na espuma que coroava a cerveja; e a cada gole que bebia passava com ar satisfeito os longos dedos magros pelo longo cabelo engordurado, enquanto aspirava o bigode franjado de espuma.
Loiseau, sob o pretexto de desentorpecer as pernas, foi vender seu vinho aos bodegueiros da região. O conde e o empresário puseram-se a falar de política. Previam o futuro da França. Um acreditava nos Orléans, o outro num salvador desconhecido, um herói que se revelaria quando toda esperança estivesse perdida: um Du Guesclin, uma Joana d’Arc, talvez? Ou outro Napoleão I?
Ah! Se o príncipe imperial não fosse tão jovem! Cornudet, escutando-os, sorria como o homem que conhece o segredo dos destinos. Seu cachimbo perfumava a cozinha.
Quando batiam dez horas, o Sr. Follenvie apareceu. Interrogaram-no depressa, mas só o que ele fez foi repetir duas ou três vezes, sem variantes, estas palavras: “O oficial me disse assim: ‘Senhor Follenvie, o senhor vai proibir que atrelem os cavalos à diligência desses viajantes. Não quero que eles partam sem minha ordem. O senhor entendeu? É isto’”.
Então quiseram falar com o oficial. O conde enviou-lhe o seu cartão, onde o Sr. Carré Lamadon acrescentou seu nome e todos os seus títulos. O prussiano mandou dizer que receberia os dois homens depois que tivesse almoçado, ou seja, perto da uma da tarde.
As senhoras reapareceram e comeu-se um pouco, apesar da preocupação.
Bola de Sebo parecia doente e assombrosamente perturbada.
 Terminavam o café quando o ordenança veio buscar os dois senhores.
Loiseau juntou-se a eles; tentavam arrastar Cornudet, para dar mais solenidade à imprecação, mas este declarou orgulhosamente que não consentia ter jamais nenhum tipo de relação com os alemães; e voltou para sua lareira, pedindo outra caneca.
Os três homens subiram e foram introduzidos no quarto mais bonito do albergue, onde o oficial os recebeu espichado numa poltrona, os pés junto ao fogo, fumando um longo cachimbo de porcelana e enrolado num roupão flamejante, sem dúvida tomado da casa abandonada de algum burguês de mau gosto.
Não se levantou, não os cumprimentou, não os mirou. Oferecia um magnífico mostruário da grosseria natural do militar vitorioso.
Ao cabo de alguns instantes, disse enfim:
“O que focês querrem?”
O conde tomou a palavra: “Desejamos partir, senhor”.
“Não”.
“Eu poderia lhe perguntar o motivo dessa recusa?”
“Porque eu non querro.”
“Gostaria de lhe fazer respeitosamente observar, senhor, que o seu comandante – em – chefe nos concedeu uma permissão para ir até Dieppe; e não penso que tenhamos feito nada para merecer seus rigores.”
“Eu non querro... é tudo... Focês potem tescer.”
Os três se inclinaram e se retiraram.
A tarde foi lamentável. Não entendiam nada daquele capricho do alemão; e as idéias mais esquisitas atormentavam as mentes. Todo mundo se deteve pela cozinha, e discutiam sem parar, imaginando coisas inverossímeis. Queriam, talvez, mantê-los como reféns? Mas com qual objetivo? Ou levá-los como prisioneiros? Ou ainda, exigir-lhes um considerável resgate/ Diante dessa idéia um pânico os desvairou. Os mais ricos eram os mais apavorados, vendo-se já obrigados, para resgatar suas vidas, a derramar sacos cheios de ouro nas mãos daquele soldado insolente. Esgaravataram o cérebro para descobrir mentiras aceitáveis, dissimular suas riquezas, fazerem-se passar por pobres, muito pobres. Loiseau retirou a corrente do relógio e meteu-a no bolso. A noite que caía aumentou a apreensão. O candeeiro foi aceso, e como havia ainda duas horas antes do jantar, a Sra. Loiseau propôs uma partida de trinta – e – um. Seria uma distração. A proposta foi aceita. O próprio Cornudet, que apagara o cachimbo por cortesia, tomou parte no jogo.
 O conde baralhou e deu as cartas. Bola de Sebo fez um trinta – e – um na primeira mão, e logo o interesse pela partida amenizou o temor que perseguia os espíritos. E Cornudet percebeu que o casal Loiseau conchavava para trapacear.
Quando iam passar à mesa, o Sr. Follenvie  reapareceu e com sua voz pigarrenta pronunciou: “O oficial prussiano manda perguntar à senhorita Élisabeth Rousset se ela ainda não mudou de idéia”.
Bola de Sebo permaneceu em pé, inteiramente pálida; depois, tornando-se de súbito muito vermelha, teve um tal acesso de fúria que não conseguia falar.
Por fim, explodiu: “O senhor vai dizer a esse crápula, a esse porco, a esse prussiano nojento, que nunca vou querer, o senhor entendeu bem? Nunca, nunca, nunca!”.
O gordo albergueiro saiu. Então Bola de Sebo foi cercada, interrogada, solicitada por todo mundo: que revelasse o mistério de sua conversa. Primeiro ela resistiu, mas a exasperação logo a venceu: “O que ele quer?... O que ele quer?... Ele quer dormir comigo!”, gritou. Ninguém se escandalizou com a palavra, tão viva foi a indignação. Cornudet quebrou seu copo ao pousá-lo violentamente sobre a mesa. Era um clamor de reprovação àquele mercenário vil, um sopro de cólera, uma união de todos para a resistência, como se tivessem pedido a cada um deles uma parte do sacrifício exigido dela. O conde declarou com repulsa que esse tipo de gente se comportava à maneira dos antigos bárbaros. As mulheres, principalmente, manifestaram uma comiseração enérgica e carinhosa com Bola de Sebo. As freiras, que apareciam apenas à hora das refeições, baixaram a cabeça e nada disseram.
Jantou-se, contudo, quando o furor inicial foi amenizado; mas falou-se pouco. Pensava-se.
As senhoras se retiraram cedo; e os homens, enquanto fumava, organizaram um carteio ao qual foi convidado o Sr. Follenvie. Pretendiam habilmente interrogá-lo sobre os meios a empregar para vencer a resistência do oficial. Mas ele só pensava nas cartas, sem escutar nada, em responder nada; e repetia sem parar: “Ao jogo, senhores, ao jogo!”. Sua concentração era tamanha, que até se esquecia de cuspir, o que lhe produzia por vezes uma nota em suspensão na música do seu peito. Seus pulmões sibilantes apresentavam toda a gama da asma, desde as notas mais graves e profundas até a rouquidão aguda dos frangotes aprendendo a cantar.
Recusou-se a subir mesmo quando sua mulher, caindo de sono, veio buscá-lo. Ela foi sozinha, pois era “da manhã”, levantando sempre com o sol, enquanto seu homem era “da noite”, sempre pronto a virar a madrugada com os amigos.
Ele gritou para ela: “Põe a minha gemada perto do fogo”, e voltou ao jogo.
Quando os outros viram que dali não conseguiriam tirar nada, disseram que estava na hora e cada qual se dirigiu para sua cama.
No dia seguinte, mais uma vez se levantaram cedo,com uma vaga esperança, um desejo maior de ir embora, um terror do dia que teriam de passar naquele horrível e miserável albergue.
Ai, ai! Os cavalos continuavam na estrebaria, o cocheiro permanecia invisível. Por falta do que fazer, foram rodar em torno do veículo.
O almoço foi muito triste, e se havia criado uma espécie de frieza em relação a Bola de Sebo, pois a noite, que é boa conselheira, modificara um pouco os juízos. Agora, quase a queriam mal por não ter ido encontrar o prussiano em segredo, a fim de arranjar, ao amanhecer, uma boa surpresa aos companheiros.
O que de mais simples? Quem, aliás, ia ficar sabendo? Ela poderia ter salvo as aparências mandando dizer ao oficial que ficara com pena da desgraça dos outros.
Para ela, aquilo tinha tão pouca importância!
Mas ninguém ainda confessava tais pensamentos.
À tarde, como morriam de tédio, o conde propôs um passeio nos arredores do vilarejo. Cada qual se agasalhou com cuidado e o pequeno grupo partiu, exceto Cornudet, que preferia ficar junto ao fogo, e as freiras, que passavam seus dias na igreja ou na residência do vigário.
O frio, cada dia mais intenso, castigava cruelmente nariz e orelhas; os pés se tornavam tão doloridos que cada passo era um suplício; e quando o campo se abriu á frente deles e revelou-se tão aterradoramente lúgubre sob aquela brancura infinita, de imediato todo mundo retornou, a alma gelada e o coração apertado.
As quatro mulheres iam na frente; os três homens seguiam um pouco atrás.
Loiseau, que entendia a situação, perguntou de súbito se aquela vagabunda ia obrigá-los a ficar ainda por muito tempo num lugar como aquele. O conde, sempre polido, disse que não se podia exigir de uma mulher um sacrifício tão penoso, e que aquilo deveria vir dela mesma. O Sr. Carré – Lamadon observou que se os franceses fizessem, como era de esperar, uma contra ofensiva por Dieppe, o encontro entre as tropas se daria obrigatoriamente em Tôtes. Tal reflexão deixou os outros dois preocupados. “Se fugíssemos a pé?”, disse Loiseau. O conde deu de ombros; “O senhor pensa mesmo nisso, nessa neve? Com nossas mulheres? E depois seríamos logo perseguidos, alcançados em dez minutos e trazidos como prisioneiros à mercê dos soldados”.
Era verdade; calaram-se.
As senhoras falavam de roupas, mas um certo constrangimento parecia desuni-las.
De repente, no fim da rua, o oficial surgiu. Sobre a neve que fechava o horizonte, ele perfilava sua cintura de vespa em uniforme, e avançava, os joelhos afastados, naquele movimento próprio dos militares que se esforçam para não sujar as botas cuidadosamente engraxadas.
Inclinou-se ao passar perto das senhoras e olhou desdenhosamente para os homens, que tiveram, de resto, a dignidade de não erguer o chapéu, embora Loiseau tivesse ensaiado o gesto.
Bola de Sebo ficara vermelha até as orelhas, e as três mulheres casadas sentiam uma grande humilhação de ser encontradas assim por aquele militar, na companhia daquela garota que ele tratara de maneira tão indecorosa.
Então falaram dele, de seu porte, de seu rosto. A Sra. Carré – Lamadon, que conehcera muitos oficiais e que os julgava com conhecimento de causa, achava que aquele ali era bem bom; até lamentava que não fosse Frances, porque daria um belo hussardo, por quem todas as mulheres decerto enlouqueceriam.
Uma vez de volta ao albergue, não sabiam mais o que fazer. Palavras azedas, inclusive, foram trocadas a propósito de coisas insignificantes. O jantar, silencioso, durou pouco tempo, e cada um subiu para o seu quarto, esperando dormir para matar o tempo.
No dia seguinte desceram com rostos casados e corações exasperados. As mulheres mal falavam com Bola de Sebo.
Um sino repicou. Era para um batizado. A gorducha tinha um filho criado por uns camponeses de Yvetot. Não via nem mesmo uma vez por ano, e nunca lembrava dele; mas o pensamento naquele que em seguida iam batizar lançou-lhe na alma uma súbita e violenta ternura pelo seu, e ela quis absolutamente assistir à cerimônia.
Assim que partiu, todo mundo se olhou, depois aproximaram as cadeiras, pois sentiam muito bem que era preciso decidir alguma coisa. Loiseau teve uma idéia: era da opinião de propor ao oficial que ficasse com Bola de Sebo e deixasse partir os outros.
 De novo o Sr. Follenvie se encarregou de fazer a comissão, mas desceu quase imediatamente. O alemão, que conhecia a natureza humana, colocara-o porta afora. Pretendia reter todo mundo enquanto seu desejo não fosse satisfeito.
Então o caráter chulo da Sra. Loiseau explodiu; “Mas não vamos morrer de velhice aqui. Já que é a profissão dela, dessa rameira, de fazer isso com todos os homens, então acho que ela tem o direito de recusar um e não recusar outro. Pensem um pouco, essa aí pegou tudo o que encontrou em Rouen, até os cocheiros! Sim, senhora, o cocheiro da prefeitura! Seu muito bem, ele compra o vinhozinho dela lá na loja. E agora, que se trata de nos livrar de uma boa, ela se faz de presumida, essa lambisgoia!... Acho que ele faz muito bem, esse oficial.
Anda privado talvez há muito tempo; e sem dúvida que ele teria preferido a nós três. Mas não, ele se contenta com aquela que é de todo mundo. Respeita as mulheres casadas. Pensem bem, é ele o chefe. Bastava dizer: ‘Eu quero’, e podia nos pegar à força com seus soldados”.
As outras duas sentiram um pequeno arrepio. Os olhos da bela Sra. Carré – Lamadon piscaram, e estava um pouco pálida, como se sentindo já pega à força pelo oficial.
Os homens, que discutiam à parte, aproximaram-se. Furioso, Loiseau queria entregar “aquela miserável”, pés e mãos atados, ao inimigo. Mas o onde, filho de três gerações de embaixadores e dotado de um físico de diplomata, era partidário da habilidade: “Seria preciso convencê-la”, disse.
Então conspiraram.
As mulheres se juntaram, o tom de voz baixou e a discussão se generalizou, cada uma dando sua opinião. O que de resto era bastante conveniente. As senhoras, sobretudo, encontravam certas delicadezas de fórmulas, expressões encantadoras e cheias de sutilidade para dizer as coisas mais escabrosas. Um estrangeiro não teria entendido nada, tamanhas eram as precauções de linguagem. Mas como a leve camada de pudor com a qual se cobre toda a mulher de sociedade resguarda apenas a superfície, elas se deleitavam naquela aventura brejeira. No fundo, divertiam-se loucamente, sentindo-se em suas essências, especulando sobre o amor com a sensualidade de um cozinheiro glutão que prepara a ceia para outro.
A alegria voltava por si mesma, tão engraçada lhes parecia à história no fim das contas. O conde arriscou brincadeiras um pouco ousadas, mas tão bem ditas que provocavam sorrisos. Por sua vez, Loiseau soltou algumas piadas mais fortes, que não chocaram ninguém; e o pensamento expresso rudemente por sua mulher dominava todos os espíritos: “Já que era a profissão dela, daquela moça, por que recusaria mais aquele do que o outro?”. A gentil Sra. Carré – Lamadon parecia mesmo pensar que no seu lugar recusaria menos aquele do que  o outro.
Prepararam o cerco longamente, como se visassem uma fortaleza. Cada qual decidiu sobre que papel desempenharia, argumentos nos quais se apoiaria, manobras que deveria executar. Acertaram o plano de ataque, os estratagemas a empregar e as surpresas do assalto, para forçar aquela cidadela viva a receber o inimigo.
Cornudet, no entanto, permanecia à parte, completamente alheio ao caso.
Estavam tomados por uma concentração tão profunda que não ouviram Bola de Sebo voltar. Mas o conde assoviou um ligeiro “Pssst” que fez todos os olhos se erguerem. Ela estava ali. Calaram-se bruscamente, e de inicio um certo embaraço impediu que lhe falassem. A condessa, mais flexível às duplicidades dos salões, perguntou: “Então, estava divertido esse batizado?”.
A gorducha, ainda emocionada, relatou tudo: e as pessoas, e as expressões, e até a decoração da igreja. E acrescentou: “É tão bom rezar de vez em quando”.
Entretanto, até a hora do almoço as senhoras se contentaram em ser amáveis com ela, para aumentar a confiança e a receptividade a seus conselhos.
Assim que sentaram à mesa, começaram a abordagem. Primeiro foi uma vaga conversa sobre a abnegação. Citaram exemplos antigos: Judite e Holofernes, depois, sem nenhuma razão, Lucrécia com Sextus, Cleópatra fazendo passar por sua cama todos os generais inimigos e ali submetendo-os a uma servidão de escravos, Então desfiou-se uma história fantasiosa, nascida da imaginação daqueles milionários ignorantes, em que as habitantes de Roma iam a Cápua para fazer Aníbal dormir em seus braços, e, com ele, seus imediatos e as falanges de mercenários. Citaram todas as mulheres que detiveram conquistadores, que fizeram de seus corpos um campo de batalha, um meio de dominação, uma arma, que venceram criaturas hediondas e detestáveis utilizando-se de heróicos afagos, e que sacrificaram suas castidades por vingança e devoção.
Falou-se até, de forma dissimulada, dessa inglesa de prestigiosa família que se deixar a inocular uma horrível e contagiosa doença para transmiti-la a Bonaparte, salvo milagrosamente por uma fraqueza súbita no momento do encontro fatal.
E tudo aquilo foi contado de maneira discreta e conveniente, onde por vezes rompia um entusiasmo premeditado para excitar a emulação.
Por fim, poder-se –ia acreditar que o único papel da mulher aqui na terra era um perpétuo sacrifício de sua pessoa, um abandono contínuo aos caprichos da soldadesca.
As duas freiras pareciam não escutar, perdidas em pensamentos profundos.
Bola de Sebo nada dizia.
Durante toda a tarde deixaram-na refletir. Mas em vez de chamarem-na de “senhora”, como até então o faziam, diziam simplesmente “senhorita”, sem que ninguém soubesse bem por quê, como se quisessem fazê-la descer um grau na estima que havia escalado, fazê-la sentir sua vergonhosa situação.
No momento em que serviram a sopa, o Sr. Follenvie reapareceu repetindo a frase da véspera: “O oficial prussiano manda perguntar à senhorita Élisabeth Rousset se ela ainda não mudou de idéia”.
Bola de Sebo respondeu secamente: “Não, senhor”.
Mas no jantar a coalisão enfraqueceu. Loiseau soltou três frases infelizes.
Todos botavam os bofes para fora na tentativa de descobrir novos exemplos, mas nada encontravam. Foi quando a condessa, sem premeditação talvez, experimentando uma vaga necessidade de prestar homenagem à Religião, interrogou a mais velha das freiras sobre os grandes feitos da vida dos santos. Ora, muitos tinham cometido atos que a nossos olhos seriam crimes, mas a igreja absolve facilmente essas faltas quando cometidas para a glória de Deus ou para o bem do próximo. Era um argumento poderoso; a condessa se aproveitou. Então, ou por um desses acordos tácitos, dessas complacências veladas em que sobressai aquele que veste um hábito eclesiástico, ou simplesmente pelo efeito de uma feliz falta de inteligência, de uma providencial besteira, a velha religiosa trouxe à conspiração um formidável apoio. Julgavam-na tímida, ela se mostrou audaciosa, verborrágica e violenta. Aquela ali não era perturbada pelas evasivas da casuística; sua doutrina parecia uma barra de ferro; sua fé não vacilava nunca; sua consciência, sem escrúpulos. Achava muito natural o sacrifício de Abraão, também ela teria imediatamente matado pai e mãe diante de uma ordem vinda do alto; e nada, em sua opinião, podia desagradar o Senhor quando a intenção era louvável. A condessa, aproveitando-se da autoridade sagrada de sua inesperada cúmplice, levou-a a fazer uma paráfrase edificante deste axioma moral: “O fim justifica os meios”.
Interrogava-a:
“Então, irmã, a senhora pensa que Deus aceita todos os caminhos e perdoa o ato quando o motivo é puro?”
“Quem poderia duvidar disso, madame? Uma ação condenável muitas vezes se torna meritória pela idéia que a inspira.”
E continuavam assim, deslindando as vontades de Deus, prevendo suas decisões, fazendo-o se interessar em coisas que, na verdade, não lhe diziam muito respeito.
Tudo aquilo era dissimulado, hábil, discreto. Mas cada palavra daquela santa mulher encapuchada abria uma brecha na resistência aferrada da cortesã. Depois, a conversa se desviando um pouco, a mulher dos rosários pendentes falou dos conventos de sua ordem, de sua superiora, dela própria e de sua delicada companheira, a querida irmã Saint- Nicéphore. Tinham-nos chamado ao Havre para cuidar de centenas de soldados atingidos pela varíola. Ela os descreveu, aqueles miseráveis, deu detalhes da doença. E enquanto eram detidas a meio caminho por causa dos caprichos daquele prussiano, um grande número de franceses, que talvez elas pudessem salvar, ia morrer! Era sua especialidade cuidar de militares; tinha estado na Criméia, na Itália, na Áustria, e, ao relatar suas campanhas, revelou-se de repente uma daquelas religiosas de bota e farda, que parecem feitas para seguir os acampamentos, recolher os feridos na esteira das batalhas e, melhor do que um comandante, domar com uma só palavra os soldados mais mercenários e indisciplinados; uma verdadeira irmã Rataplã, cuja cara destroçada, crivada de inumeráveis buracos, era mais uma imagem das devastações da guerra.
Ninguém disse nada depois dela, tão formidável parecia o efeito.
Assim que a refeição terminou subiram depressa aos quartos, para descer apenas no dia seguinte, tarde da manhã.
O café da manhã foi tranqüilo. Davam à semente plantada na véspera o tempo de germinar e produzir seus frutos.
A condessa propôs uma caminhada à tarde; então o conde, como estava combinado, tomou do braço de bola de Sebo e deixou-se ficar para trás, só com ela.
Falhou-se naquele tom familiar, paternal, um pouco desdenhoso, que os homens ajuizados empregam com as garotas, chamando-a de “minha filhinha”, tratando-a do alto de sua posição social e de sua indiscutível honradez. De súbito, penetrou no centro da questão:
“Então você prefere nos deixar aqui, expostos, e você também, a todas as violências que sucederiam a um fracasso das tropas prussianas, a admitir uma dessas distrações que tantas vezes teve na vida?”
Bola de Sebo não respondeu.
Ele soube conversá-la, foi hábil na argumentação, lidou bem com os sentimentos. Soube continuar sendo “o senhor conde”, mostrando-se cortês quando foi preciso, adulador, enfim, adorável. Exaltou o favor que ela lhes faria, falou do reconhecimento que teriam; depois, de súbito, tratando-a por “você”, alegremente: “E depois, sabe, minha querida, ele poderia se gabar de ter experimentado uma bela de uma menina como você; como não se encontram muitas assim no país dele”.
Bola de Sebo não respondeu e juntou-se aos outros.
Assim que voltaram ao albergue, subiu para o quarto e não reapareceu. A apreensão era extrema. O que ela ia fazer? Se continuasse resistindo, que embrulhada!
Chegou à hora Ed jantar; esperavam em vão. O Sr. Follenvie apareceu e anunciou que a Srta. Rousset sentia-se indisposta, que os outros podiam passar à mesa. Todo mundo espichou a orelha. O conde se aproximou do albergueiro e disse baixinho:
“Feito?”
“Sim.”
Por polidez, não disse nada aos companheiros, mas fez-lhes um ligeiro sinal com a cabeça. Imediatamente um grande suspiro de alívio saiu de todos os peitos, uma alegria brotou em seus rostos. Loiseau gritou: “Arre! Pago o champanhe, se encontrarem champanhe nesta casa”; e a Sra. Loiseau sentiu uma dor quando o dono do albergue apareceu com quatro garrafas nas mãos. Todos tinham se tornado subitamente comunicativos e barulhentos; uma alegria libertina enchia os corações. O conde pareceu se dar conta de que a Sra. Carré – Lamadon era encantadora, o empresário fez cumprimentos à condessa. A conversa foi viva, jovial, plena de boas tiradas.
De repente Loiseau, a face ansiada e erguendo os braços, gritou: “Silêncio!”.
Todos ficaram mudos, surpresos, já quase apavorados. Então ele espichou a orelha fazendo “Psst” com as duas mãos, ergueu os olhos em direção ao teto, escutou de novo e retomou, com sua voz natural: “Fiquei tranqüilos, vai tudo bem”.
Hesitavam em compreender, mas logo um sorriso perpassou.
Ao cabo de um quarto de hora ele recomeçou a mesma brincadeira, fê-la várias vezes durante a noite, e fingia interpelar alguém no andar de cima, dando conselhos de duplo sentido saídos de seu espírito de caixeiro-viajante. Por instantes fazia um ar triste e suspirava: “Pobre menina!”, ou então murmurava entredentes, com ar raivoso: “Vai-te, prussiano miserável!”. Outras vezes, quando já não se pensava mais naquilo, largava, com voz vibrante, vários “Chega! Chega!” e acrescentava, como se falando para si próprio: “Desde que voltemos a vê-la; que não a mate, o miserável!”.
Embora aquelas piadas fossem de um gosto deplorável, elas divertiam e não feriam ninguém, pois a indignação, como o resto, depende do ambiente, e a atmosfera que pouco a pouco se criara em torno deles estava carregada de pensamentos indecentes.
Na sobremesa até as mulheres fizeram alusões espirituosas e discretas, Os olhares brilhavam; tinha-se bebido bastante. O conde, que mesmo nos momentos de expansão conservava sua aparência grave, fez uma comparação muito apreciada sobre o fim da estação gelada no pólo e a felicidade dos náufragos, que assim viam abrir-se o caminho em direção ao sul.
Loiseau, entusiasmado, ergueu-se, um copo de champanhe na mão: “Bebo à nossa liberação!”. Todo mundo ficou em pé; aclamaram-no. As duas freiras, até elas, a pedido das senhoras consentiram em molhar os lábios naquele vinho espumante que jamais haviam experimentado. Disseram que se parecia com limonada gasosa, mas mais fino.
Loiseau resumiu a situação.
“É pena não ter um piano aqui, porque se poderia dedilhar uma quadrilha”.
Cornudet não dissera nenhuma palavra, não fizera nenhum gesto; parecia mesmo mergulhado em pensamentos muito graves, e por vezes, num gesto de raiva, puxava sua grande barba, como se quisesse alongá-la ainda mais. Enfim, perto da meia-noite, quando iam se retirar, Loiseau, que já cambaleava, deu-lhe um tapa na barriga e disse, balbuciante: “Você está meio abatido esta noite; não diz nada, cidadão?”. Cornudet ergueu bruscamente a cabeça, e percorrendo todo o grupo com um olhar fulminante, terrível: “Vou dizer-lhes uma coisa vocês todos acabam de praticar uma infâmia!”. Levantou, caminhou até a porta, repetia ainda uma vez: “Uma infâmia!”, e desapareceu.
Antes de mais nada, aquilo foi um balde de água fria. Loiseau, desconcertado, permanecia pasmo; mas em seguida retomou o prumo e de repente começou a se torcer de rir, repetindo: “Estão verdes as uvas, meu velho, estão verdes”.
Como ninguém entendia, contou sobre os “ministérios do corredor”. Então houve uma formidável retomada da alegria. Aquelas damas se divertiam como loucas.
O conde e o Sr. Carré – Lamadon choravam de tanto rir. Não podiam acreditar.
“Como? Você tem certeza? Ele queria...”
“Mas estou dizendo que vi ele.”
“E ela recusou...”
“Porque o prussiano estava no quarto ao lado.”
“Não é possível...”
“Juro.”
O conde sufocava. O industrial apertava a barriga com as duas mãos. Loiseau continuava:
“E é compreensível. Esta noite ele não acha nada engraçado, mas não acha mesmo.”
E todos os três explodiram outra vez, esbaforidos, tossindo.
Separam-se ali. Mas a Sra. Loiseau, que era da natureza das urtigas, observou ao marido enquanto se deitavam que “aquela exibidinha” da Carré – Lamadon rira amarelo o tempo todo: “Sabe, as mulheres, quando elas se apegam a um uniforme, que ele seja Francês ou prussiano, garanto que dá na mesma. Se não é de dar pena, meu Deus!”.
E toda a noite, pela escuridão do corredor, correram como que tremores, ruídos leves, a muito custo percebidos, semelhantes a respirações, um roçar de pés nus, estalidos quase inaudíveis.
E dormiu-se apenas já muito tarde da noite, certamente, pois durante muito tempo fiapos de luz escorregaram pela fresta debaixo das portas. O champanhe tem desses efeitos; dizem que perturba o sono.
No dia seguinte, um luminoso sol de inverno deixava a neve ofuscante. A diligência, enfim atrelada, esperava à frente da porta, enquanto uma multidão de pombos brancos, empertigados em sua plumagem espessa, com um olho cor-de-rosa marcado por um ponto negro no meio, passeava solenemente entre as patas dos seis cavalos e buscava a vida no Esterco fumegante que eles que eles soltavam.
O cocheiro, enrolado em seu agasalho de pele, queimava um cachimbo, já assentado na boleia. E todos os passageiros, radiosos, empacotavam rapidamente algumas provisões para o resto da viagem.
Aguardavam apenas Bola de Sebo. Ela surgiu.
Parecia um pouco perturbada, envergonhada; avançou timidamente em direção aos companheiros, que, todos, num mesmo movimento, viraram-se como se não a tivessem visto. O conde tomou com dignidade o braço de sua mulher e se afastou daquele contato impuro.
A gorducha estacou perplexa; então, reunindo toda a coragem, abordou a mulher do empresário com um “bom dia, madame” humildemente murmurado. A outra fez uma pequena e impertinente saudação com a cabeça acompanhada de um olhar de virtude ultrajada. Todo mundo parecia muito ocupado, e mantinham-se longe, como se ela carregasse uma infecção sob a saia. Depois precipitaram-se para o carro, onde ela chegou sozinha, por último, e retomou em silêncio o lugar que ocupara durante a primeira parte da viagem.
Pareciam não enxergá-la, não conhecê-la; e a Sra. Loiseau, considerando-a de longe e com indignação, disse a meia – voz ao marido: “Ainda bem que não fiquei ao lado dela”.
A pesada diligência se moveu, e a viagem recomeçou.
De inicio ninguém falava. Bola de Sebo não ousava erguer os olhos. Sentia-se ao mesmo tempo indignada com seus companheiros e humilhada por ter cedido, emporcalhada pelos beijos daquele prussiano em cujos braços tinham-na hipocritamente atirado.
Mas a condessa, virando-se para a Sra. Carré – Lamadon, logo quebrou o penoso silêncio.
  “A senhora conhece, suponho, a senhora d’Etrelles?”
“Sim, é uma de minhas amigas.”
“Que mulher encantadora!”
“Deslumbrante! Uma pessoa fora do comum, muito instruída, aliás, e artista até a raiz dos cabelos; canta que é um sonho, e desenha à perfeição.”
O empresário conversava com o conde e, em meio à barulheira das vidraças batendo, uma palavra por vezes chegava: “recibo – vencimento – prêmio – a prazo”.
Loiseau, que havia surripiado o velho baralho do albergue, ensebado por cinco anos a roçar mesas enxugadas, começou um besigue com a mulher.
As freiras pegaram da cintura o longo rosário pendente, fizeram juntas o sinal da cruz e de imediato sues lábios começaram a se mover vivamente, apressando-se cada vez mais, precipitando um vago murmúrio como se numa corrida de oremus; e de quando em quando beijavam uma medalha, benzendo-se de novo, depois recomeçavam seu murmurinho rápido e contínuo.
Cornudet pensava, imóvel.
Ao cabo de três horas de estrada, Loiseau recolheu as cartas: “Dá fome”, disse.
Então sua mulher alcançou um pacote amarrado num cordão, de onde retirou um pedaço de carne assada. Partiu-a cuidadosamente em fatias finas e firmes, e os dois se puseram a comer.
“E se fizéssemos o mesmo?”, disse a condessa. Consentiram, e ela desembalou os alimentos preparados para os dois casais. Era uma dessa vasilhas alongadas, cuja tampa traz uma lebre de faiança para indicar que ali embaixo jaz uma lebre em forma de patê, uma charcutaria suculenta onde brancos veios de toucinho atravessavam a carne amarronzada da caça, misturada com outras carnes moídas. Um belo pedaço de gruyére, enrolado num jornal, conservava impresso “fail divers” sobre sua textura oleosa.
As duas freiras abriram um rolo de lingüiça que cheirava a alho; e Cornudet, mergulhando as duas mãos ao mesmo tempo nos enormes bolsos de seu casaco-mochila, puxou de um deles quatro ovos duros, e do outro o bico de um pão.
Retirou a casca dos ovos, jogou-a na palha embaixo dos pés e pôs-se a mordê-los diretamente, deixando cair na barba os pedacinhos de gema, que despontava como se fossem estrelas.
Bola de Sebo, na pressa e no sobressalto com que havia se levantado, não pudera pensar em nada e olhava exasperada, sufocada pela raiva, todas aquelas pessoas que comiam placidamente. Primeiro um tumulto de cólera a crispou, e ela chegou a abrir a boca para gritar-lhes a verdade com uma enxurrada de injúrias que lhe vinha aos lábios; mas não podia falar, tamanha a exasperação que a estrangulava.
Ninguém a olhava, não pensavam nela. Sentia-se afogada no desprezo daqueles polidos tratantes que atinham sacrificado primeiro e a rejeitado em seguida, como uma coisa imunda e inútil. Então pensou em seu grande cesto cheio de coisas boas que eles tinham gulosamente devorado, em seus dois frangos reluzentes de gordura, nos patês, nas peras, nas quatro garrafas de Bordeaux; e seu furor caindo de súbito, como de uma corda esticada demais que se rompe, ela se sentiu prestes a chorar. Fez um esforço terrível, se retesou, engoliu os soluços como fazem as crianças, mas o choro subia, brilhava na borda de suas pálpebras, e logo duas grossas lágrimas desgrudaram-se dos olhos e rolaram lentamente pelas bochechas. Outras as seguiram mais depressa, escorrendo como as gotas d’água que se infiltram numa rocha, e caindo regularmente sobre a curva rechonchuda de seu peito. Ela continuava tesa, o olhar fixo, a face rígida e pálida, esperando que não a vissem.
Mas a condessa se deu conta e mostrou ao marido com um sinal. Ele encolheu os ombros, como dizer: “O que você quer? Não tenho culpa”. As Sra. Loiseau soltou um riso mudo de triunfo e murmurou: “Ela chora de vergonha”.
As duas freiras tinham voltado a rezar depois de enrolar o resto da lingüiça num pedaço de papel.
Então Cornudet, que digeria seu lanche, estendeu as pernas compridas sobre banco da frente, virou-se de lado, sorriu como um homem que acaba de descobrir uma boa piada e pôs-se a assoviar La marseillaise.
Todos os rostos se turvaram. O canto popular certamente não agradava os vizinhos. Eles se tornaram nervosos, irritados, e pareciam a ponto de uivar, como os cães que ouvem um relejo.
Ele percebeu, e não parou mais. Por vezes cantarolava a letra:

Amour sacré de La patrie,
Conduis, soutiens, nos Brás vengeurs,
Liberté, liberte, chérie,
Combat avec tes défenseurs!

Com a neve um pouco mais endurecida, o carro avançava mais rápido; e até Dieppe, durante as longas e tristes horas da viagem, em meio aos solavancos da estrada, pelo cair da noite, depois na escuridão profunda do veículo, ele continuou, com uma feroz obstinação, seu assovio vingador e monótono, obrigando os espíritos cansados e exasperados a seguir o canto do inicio ao fim, a se lembrar de cada palavra que correspondia a cada compasso.
E Bola de Sebo continuava a chorar; e por vezes um soluço que não conseguira conter passava, entre duas estrofes, nas trevas.