terça-feira, 12 de julho de 2011

Trechos do capítulo XX e capítulo XXIV do livro Brás Cubas - Machado de Assis

Capitulo XX / Bacharelo-me

....... E foi assim que desembarquei em Lisboa e segui para Coimbra. A universidade esperava-me com as suas matérias árduas; estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel; deram-me com a solenidade do estilo, após os anos da lei; bela festa que me encheu de orgulho e de saudade – principalmente de saudades. Tinha eu conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião; eram acadêmico e estróina, superficial, tumultuário e petulante, dado às aventuras, fazendo romantismo prático ele liberalismo teórico, vivendo na pura fé dos olhos pretos e das constituições escritas. No dia em que a universidade me atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso. Explico-me: O diploma era uma carta de alforria; se me dava à liberdade, dava-me a responsabilidade. Guardei-o, deixei as margens do Mondego, e vim por ali fora assaz desconsolado, mas sentindo já uns ímpetos, uma curiosidade, um desejo de acotovelar os outros, de influir, de gozar, de viver – de prolongar a universidade pela vida adiante...



Capítulo XXIV / Curto, Mas Alegre

Fiquei prostrado. E com tudo era eu nesse tempo, um fiel compêndio de trivialidade e presunção. Jamais o problema da vida e da morte me oprimira o cérebro; Nunca até esse dia me debruçara sobre o abismo do Inexplicável; faltava-me o essencial, que é o estimulo, a vertigem...

Para lhe dizer a verdade toda, eu refletia as opiniões de um cabeleireiro, que achei em Módena, e que se distinguia por não as ter absolutamente. Era a flor dos cabeleireiros; por mais demorada que fosse a operação do toucado, não enfadava nunca; ele intercalava a penteadelas com muitos motes  e pulhas, cheios de um bico, de um sabor... Não tinha outra filosofia. Nem eu. Não digo que a universidade me tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim; embolsei três versos de Virgílio, dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas, para as despesas de conversação. Tratei-os como tratei a história e a jurisprudência. Colhi de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação...

Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças, obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força a embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; não há platéia. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que ele não estenda para cá, e nos examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá o exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados.